Paganismo, religião e o Brasil

A religião germânica antiga, tal qual a conhecemos, tinha duas características básicas: ela era uma religião primária, e uma que aceita o mundo.

Isso quer dizer que, primeiramente, a religião antiga era associada a um povo, que chamamos genericamente de “povo germânico”. Dentro desse nome existiam, claro, diversas tribos, etnias e idiomas, cada um com suas peculiaridades, crenças e tradições. Os povos escandinavos não eram iguais aos povos anglo-saxões que não eram iguais aos visigodos que não eram iguais aos frísios e aos francos.

Por ser uma religião primária, ela não tem pretensão a ser uma religião universal, que se aplica a todas pessoas do mundo, com uma verdade absoluta. Suas verdades são as verdades daquele povo que a pratica. Eles sabiam, e compreendiam, que povos diferentes tinham culturas, costumes, verdades e religiões diferentes. Isso contrasta com religiões universais, que tem uma verdade para todos os povos. As religiões abraâmicas, em especial o Cristianismo e o Islã, são universais.

(O Judaísmo continua sendo uma religião primária, do povo judaico.)

Da mesma forma, ela é uma religião que aceita o mundo. isso quer dizer que não há contraste entre uma realidade mundana e uma realidade “transcendente”. O “objetivo” da crença germânica não é a salvação nem as delícias do mundo extra-terreno transcendente, melhor que o mundo. Muito pelo contrário: o que existe, o que é real, seus atos e atitudes, são o que o fazem um “bom” ou “mau” heathen.

A religião germânica era tão submersa no mundo deles, que ela não tinha nome. Era apenas o “jeito que fazemos as coisas”.

No passado não havia distinção entre religião e filosofia. Isso se percebe mais claramente nas religiões asiáticas, como confucianismo e o budismo, que são alternadamente chamadas de filosofia e de religião, por serem peculiares: nelas, os deuses são menos importantes do que outros aspectos filosóficos-culturais. Claro; pra eles, essa distinção não existia. Não é preciso haver um deus para existir religião. Muito do que nós entendemos por religião é herança de nosso passado (e presente) cristão. A distinção entre filosofia e religião vem com o Iluminismo europeu, que procurava romper com os ditames da Igreja, em nome da razão. Se foram bem sucedidos ou não nessa empreitada, bem, fica a critério de cada um analisar.

Também não havia distinção entre religião e Estado. Nós vemos muito, especialmente atualmente, nas relações entre o Daesh e o(s) estado(s) que, de forma ou de outra, controlam, e entre o Talibã e o Afeganistão, assim como outras teocracias, mas também existe em outros lugares, mais sutilmente. Poucos se lembram que Elizabeth II, rainha da Inglaterra e da Commonwealth, é também a líder religiosa da Igreja Anglicana.

Na tão-falada Escandinávia, famosa por sua liberdade social e cultural, quase todos os países tem uma religião (cristã protestante) oficial, se não todos. Na Suécia, a Svenskakyrkan é a religião nacional. O mesmo acontece com a Dinamarca, a Islândia, e outros países com igrejas nacionais (estes dois, inclusive, com suas religiões nacionais estabelecidas oficialmente em suas constituições como religião oficial do Estado). A Suécia promoveu a separação entre Estado e Igreja oficialmente apenas no ano 2000.

O que, claro, não impede que existam outras religiões reconhecidas dentro do país, e não implica que há perseguição religiosa ou social de pessoas que não seguem a religião oficial.

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O Henge Ártico, ou Heimskautsgerðið. Monumento aos pagãos islandeses, ainda em construção.  Localizado em Haufarhöfn, Islândia. Apesar da religião oficial ser cristã, o paganismo é aceito, inclusive como expressão cultural. Foto por Jennifer Boyer, via Flickr.

Na linha contrária, temos países sem religião oficial, os chamados estados laicos. O Brasil se enquadra nesta situação, já que a Constituição Federal, art. 5º, incisos VI a VIII, garante a liberdade de crenças e de culto, e em seu art. 19, I, diz expressamente que é vedado ao Estado “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.

Mas nós sabemos que a realidade nem sempre segue o que está escrito. A maioria da população brasileira é cristã, de acordo com o último censo realizado pelo IBGE (2010), representando, entre evangélicos e católicos, 86,8% da população. Houve uma redistribuição entre evangélicos e católicos, e um pouco de crescimento entre pessoas sem religião desde 2000, de outras religiosidades e espíritas, mas, de resto, a maioria esmagadora é cristã.

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Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000/2010. Documento completo.

Isso traz consequências reais para o país. Nós vivemos em uma população largamente judaico-cristã, que tem a visão de mundo, preceitos, e moral da maioria cristã, embora esta última venha se modificando ao longo do tempo, seguindo a tendência ocidental. Enquanto pagãos, nós somos não somente a exceção, mas a exceção da exceção. Nossa religiosidade não é sequer expressiva o suficiente para ser notada percentualmente. Entramos nos 2,7% da população de “outra religiosidade”, que inclui crenças como hinduísmo, budismo, e até mesmo o islamismo e judaísmo.

Sendo humanos, nos movemos em vários meios, com nossas ideias, ideais, visão de mundo, etc., não é difícil entender que conceitos de política e religião se entremeiem (e, como dissemos, a separação de ambos é relativamente recente). Ora, se nós temos uma visão de mundo, é natural que a tenhamos porque a consideramos boa, e é natural que nos comportemos de acordo com ela.

Mas nós somos minoria.

minoria da minoria.

Isso nos deixa na posição bastante desconfortável de estarmos sujeitos, largamente, aos “ditames” da sociedade como um todo. Ao contrário de religiões como hinduísmo e islamismo, que, embora minoria aqui, são reconhecidas e prevalentes em outras partes do mundo, não há autoridade ou visibilidade geral sobre o paganismo, especialmente o de raiz germânica. Nós dificilmente concordamos sequer com nós mesmos.

E, ironicamente, é exatamente assim que o paganismo deve ser. Descentralizado, e, até de certa forma, conflitante entre si… até o momento que as palavras de um, ou os atos de um, afetam o todo. Aí não é uma questão apenas de religião e opinião, mas também uma questão de sobrevivência: ideias nocivas devem ser combatidas, não só pelo bem de todos, mas pela nossa própria sobrevivência.

Isso não quer dizer suprimir as diferenças, mas sim conscientizar-se que, como a minoria, nós podemos muito bem sofrer — como um todo — as consequências de alguns, e que nem todas as ideias que temos são “puramente pagãs” (o que, aliás, é a regra, não a exceção). Em uma religião que é embasada em comunidade, é fácil ver como isso pode ser perigoso. É, inclusive, tão perigoso dizer “cada um com sua opinião” quanto dizer “todos tem que pensar assim, e quem não pensa assim não é parte de nós”. Isso porque enquanto o último tira a diversidade, o primeiro tira a comunidade — ambos aspectos fundamentais da vivência religiosa.

É sempre importante perceber, ou tentar perceber, que a maioria não está a seu favor (ou, diretamente, contra você). A maioria não condiz com sua religião, seus ideais e sua visão de mundo. A maioria sequer sabe que você existe e, você existindo, provavelmente não terá a preocupação de proteger seus interesses. Os ideais da maioria não são os seus, embora, em alguns momentos, eles possam concordar em certos pontos. Ser pagão no Brasil, atualmente, já é estar em desvantagem social ou política. Nosso anonimato serve como “coberta”, no momento, mas conforme o movimento cresce, como é de praxe com qualquer religião, é bastante provável que haja resistência.

Perceba que em nenhum momento eu menciono orientação política, social ou cultural. Respostas absolutas não existem. Eu tenho meu posicionamento, e aquele que faz mais sentido de acordo com o que conheço da religião, mas não presumo representar a todos nem ser a “dona da verdade”, muito pelo contrário. Seria contra minha visão de mundo e ideais forçar uma ideologia ou verdade em alguém.

A única coisa que eu peço, recomendo, indico, o que for, é cautela. Cautela com quem se apoia, porque se apoia. Cuidado com o que se valoriza, e, principalmente, com as consequências futuras das escolhas feitas hoje. Olhar além de agendas, valores, princípios e, principalmente, além da cultura em que estamos esmagadoramente imersos.

 


Congresso Nacional, por Pedro França/Agência Senado, via Flickr.

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